- segunda-feira, 09 maio 2016 22:00
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Nossa Araucária Araucaria angustifolia é uma sobrevivente. Também chamada de pinheiro-do-paraná e pinheiro-brasileiro, sua linhagem dominava as florestas do Jurássico, 160 milhões de anos atrás, e alimentava os grandes dinossauros saurópodos, os maiores animais terrestres que já existiram.
Os dinossauros se extinguiram 65 milhões de anos atrás junto com as araucárias do Hemisfério norte. Mas a linhagem continuou a prosperar no sul, no antigo supercontinente de Gondwana.
Gondwana deu origem à Antártica, Austrália e ilhas próximas, além da América do Sul. E as araucárias continuam entre nós, com 17 espécies na Austrália, Nova Guiné, ilha Norfolk e Nova Caledônia (onde há 13 espécies endêmicas) e duas na América do Sul. Incluindo nossa Araucaria angustifolia.
Quando a deixam viver o suficiente, essa potencial gigante que gosta de climas frios e úmidos pode atingir 50 metros de altura e mais de 3 metros de diâmetro. O último período glacial, frio e seco, não foi bom para ela, que acabou refugiada nas serras e vales mais frios enquanto boa parte do sul do Brasil era ocupado por campos.
As araucárias remanescentes nas serras de Minas Gerais, Rio de Janeiro e São Paulo são um testemunho deste período frio.
Com o fim do período glacial e a mudança para um clima mais úmido, as araucárias começaram a crescer sobre os campos, com uma grande expansão entre 4.500 e 1.000 anos atrás. Essa pode ter sido ajudada pelas populações ameríndias, que como nós e dezenas de outros animais, apreciavam os pinhões e provavelmente plantavam araucárias em locais convenientes.
Isso mudou com a invenção do Brasil.
Debacle das Araucárias
Nosso país trava uma guerra de extermínio contra as florestas. A Floresta com Araucária – uma das mais belas do país - foi uma maiores vítimas. Antes um bloco mais ou menos contínuo com 200 mil km2 cobrindo o interior do Paraná (40% do estado), Santa Catarina (30%) e Rio Grande do Sul (25%), onde se mesclava com os Campos Sulinos, hoje resta, com boa vontade, 12% da extensão original ainda com algumas árvores que justifiquem chamá-las de floresta.
Menos de 1% pode ser considerado de florestas maduras, que atingiram seu potencial máximo.
Essa destruição aconteceu na maior parte entre as décadas de 1930 e 1970, em menos de duas gerações. O Brasil realmente é campeão naquilo que só envergonha.
O massacre seguiu um roteiro que foi repetido em locais como o Pontal do Paranapanema, o sul da Bahia e toda a Amazônia. Começa com a abertura de estradas e ferrovias, passa por projetos de colonização e “reforma agrária”, muita grilagem e o incentivo a madeireiras que trabalharam como se não houvesse amanhã. E fecha com fazendeiros criando gado e soja para alimentar uma humanidade cada vez mais obesa.
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Some-se a isso o apoio tácito do Estado à destruição, como acontece na Amazônia via FINOR, BNDES, SUDAM, etc., nesse caso através de órgãos como o Instituto Nacional do Pinho.
Em meio ao desastre, sucessivos governos falharam miseravelmente em criar unidades de conservação em áreas extensas deste ecossistema. Restam cacos.
Muitas áreas antes ocupadas por araucárias são hoje plantações de pinus e eucaliptos. Bizarramente, plantações de araucária ocupam áreas extensas na vizinha Argentina, mas não aqui, terra do “pinheiro-do-brasil”.
Uma razão é que muitos proprietários acreditam que não poderão cortar suas árvores quando chegarem ao tamanho comercial. O que acontece bem depois de começarem a produzir pinhões. Sou apenas eu que noto algo errado aqui?
As Florestas com Araucária, embora dominadas por uma espécie arbórea, abrigam umas 2.800 espécies de plantas. Muitas são endêmicas, como 827 de 2.117 plantas com flores (Angiospermas), 47 de 352 árvores e 15 das 57 samambaias e afins. A fauna também apresenta exclusividades, notavelmente entre os invertebrados, anfíbios, répteis e pequenos mamíferos.
Entre as aves, minha praia, dentre as cerca de 250 espécies nas Florestas com Araucária, há uns 12 táxons que podem ser considerados restritos à “área-núcleo” das araucárias no sul do Brasil e serras satélite no sul e sudeste.
Papagaio-de-peito-roxo
Dois papagaios ocorrem nestas matas. E são os protagonistas de uma festa especial que acontece todos os anos em Urupema, a cidade mais fria do Brasil, nas terras altas de Santa Catarina.
À parte algumas populações no norte da Argentina e Paraguai, o Papagaio-de-peito-roxo Amazona vinacea ocorre pontualmente nas regiões serranas do sul da Bahia, Espírito Santo, Minas Gerais, Rio de Janeiro e São Paulo, e nas serras e planaltos do Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do Sul. Fora poucas localidades, no geral sua distribuição coincide com a das araucárias, que produz os pinhões que são um prato favorito desta espécie.
Os peito-roxo foram dizimados pela destruição de seu ambiente serrano, fato fácil de atestar por qualquer um que já passeou pelas serras Baiana, Fluminense e Capixaba, leste de Minas Gerais e Serra da Mantiqueira. Isso aconteceu especialmente no sul, no holocausto das Florestas com Araucária.
A isso se soma a captura de filhotes, roubados nos ninhos porque ainda há quem cultiva o costume brega, coisa de gente primitiva, de ter aves presas em casa.
Os peito-roxo já foram considerados extremamente fáceis de encontrar, com registros históricos considerando-os as “aves mais comum” na serra fluminense e “escurecendo o céu” em Santa Catarina. Um censo recente estima que hoje existam míseros 3 mil exemplares.
Parabéns para você que quer ter um louro em casa.
Do Rio Grande do Sul para Santa Catarina
O charão Amazona pretrei é mais estritamente associado às Araucárias e já foi considerado uma especialidade do Rio Grande do Sul, onde nidifica na região central e norte do estado, uma paisagem de capões de mata dispersos em terras agrícolas.
À parte bichos perdidos na Argentina (dois em 20 anos), no último século os charões sempre ficaram em plagas farroupilhas. Após criarem seus filhotes, se deslocavam das áreas de reprodução para regiões onde predominavam as araucárias. Ali, bandos com milhares de aves se congregavam para aproveitar a safra do pinhão.
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Em 1950, um residente de Vacaria reportou observar um bando de papagaios com 1 quilômetro de largura que levou 45 minutos para passar sobre sua cabeça. Pode ser exagero, mas não há dúvida de que os charões (assim como os peito-roxo) já foram extremamente comuns e se reuniam em número prodigioso nas áreas de invernada.
Um destes lugares era a Estação Ecológica Aracuri-Esmeralda, um remanescente de florestas de araucária com 250 hectares, onde cerca de 10-30 mil aves se reuniam nos anos 1970, razão pela qual foi criada a reserva, em 1971.
Só que hoje as hordas dos charões não mais se reúnem ali. A destruição das terras no entorno tornou a pequena reserva incapaz de mantê-los. E, certamente, um monte de outras espécies também se foi graças à fragmentação e isolamento. Um problema sério no Rio Grande do Sul continua sendo a degradação dos capões e matas de galeria na área de reprodução pela retirada de lenha e pastoreio de gado, que impede a regeneração das árvores.
A destruição de seu habitat e a captura para venda aos gaioleiros (300 a 500 filhotes eram retirados a cada ano na década de 1990) levaram a população a um mínimo de 7.500-8.500 indivíduos em 1993-94, quando foi realizado o primeiro censo da espécie, que, por isso, deixou de aparecer em antigos locais de ocorrência, como a Serra do Tapes e a Serra do Herval.
Em meio a esta desgraça generalizada, a história recente dos charões é um alento.
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A situação dos charões chamou a atenção de conservacionistas e pesquisadores e, entre outras iniciativas, levou à criação do Projeto Charão, que já completou 20 anos. Entre atividades de pesquisa e conservação mão na massa, o Projeto conseguiu reduzir a captura de papagaios, conscientizar proprietários rurais para que manejem melhor suas florestas e instalar caixas-ninho, ações que têm permitido a recuperação da população.
O crescimento levou os charões de uma população (leia aqui no capítulo sobre a espécie) de uns 8,5 mil indivíduos, em 1995, para, hoje, algo como 22 mil na natureza.
Fora isso, na década de 1980 os papagaios gaúchos mudaram seu comportamento migratório e “apareceram” em Santa Catarina, onde estão os maiores remanescentes da Floresta com Araucária (que já foi do Paraná...). Ali, os “papagaios estrangeiros”- como os locais os chamavam - descobriram uma mina de pinhões, alimento crítico que lhes permite acumular reservas de gordura para migrarem e se reproduzirem.
Novo lar
Na Serra Catarinense os papagaios podem ser vistos em grupos de milhares de aves na região centrada nos municípios de Lages, Painel e Urupema. Em maio de 2010, a equipe do Projeto Charão gentilmente me guiou até o dormitório onde cerca de 11 mil aves se reuniam no final da tarde.
Foi um dos espetáculos mais incríveis que já vi.
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Em junho de 2011, minha amiga e colunista do O Eco Maria Tereza Jorge Pádua publicou um artigo sobre um dos mais impressionantes e, até então, desconhecidos espetáculos da vida selvagem na América do Sul: os bandos de milhares de papagaios-charões que se reúnem na Serra Catarinense a cada ano quando as araucárias começam a amadurecer seus pinhões.
O texto descrevia o espetáculo dos papagaios -- então desprezado pelas autoridades responsáveis pelo desenvolvimento regional --, seu potencial como catalisador para o ecoturismo e a necessidade de melhorar o receptivo turístico.
Este artigo não caiu em ouvidos moucos. Ele foi o estopim que levou à criação do 1º Festival do Papagaio-charão, com a primeira edição já em 2012.
Festivais de observação de aves são tradicionais em vários lugares do mundo, onde a festa gira em torno de uma ou mais espécies emblemáticas. Atividades que vão de palestras a feiras de produtos, claro, passando por saídas de campo. Atraem visitantes que movimentam a economia local e animam a vida cultural de lugares que, em muitos casos, seriam visitados por poucos.
No Brasil se destaca, além do festival de Urupema, o precursor Festival Brasileiro de Aves Migratórias, em Tavares, porta de entrada do Parque Nacional da Lagoa do Peixe, que em outubro deste ano terá sua 13ª edição.
Além, é lógico, do Avistar, nossa feira de observadores de aves e seus filhotes (Rio, Brasília, Belo Horizonte, Vale Europeu, Vitória, Rio Branco...)
O rebatizado Festival do Papagaio-charão e Festival do Papagaio-de-peito-roxo ocorre em Urupema, a cidade mais fria do Brasil, em datas variáveis que aproveitam os feriados entre o final de abril e o início de maio. A edição de 2016 foi durante o feriado prolongado do 21 de abril.
Depois daquela visita em 2010, voltei à região para participar do Festival. E gostei muito do que vi.
Fria e hospitaleira
Urupema está em uma das regiões mais cênicas do Brasil. O mosaico de campos naturais e florestas com muitas araucárias, de serras e planuras, agrada os olhos. Ali pudemos ver bandos com milhares de papagaios-charões (e um número bem menor de peitos-roxos) sob aquela luz que faz os fotógrafos rirem sozinhos. Inclusive na própria pousada onde ficamos, a agradável Eco Pousada Rio dos Touros.
E além de muitos, muitos e muitos papagaios que posaram voando, pousados, comendo pinhões, brincando, etc., etc., também vimos especialidades e raridades, como o Pedreiro Cinclodes pabsti e o Grimpeirinho Leptasthenura striolata – endemismos do sul do Brasil, e os ameaçados Veste-amarelaXanthopsar flavus, Noivinha-de-rabo-preto Xolmis dominicanus e a impressionante Águia-cinzentaUrubitinga coronata. Além de uma certa espécie ainda não descrita que não entregarei aqui.
E espero que tantas outras cidades que têm aves fantásticas como Urupema percebam o potencial deste turismo. Desejo o mesmo para os órgãos ambientais que estupidamente continuam fechando os parques para os observadores de aves.
Apesar de ter apenas cerca de 2,5 mil habitantes, Urupema tem acesso fácil e agradáveis pousada. A culinária, sabendo onde, tem joias que degustamos durante o jantar oferecido pela organização. Parabéns aos mestres jedi e padawans dos cursos de gastronomia e enologia do IFSC.
E, last but not least, a cidade está em uma região que produz vinhos de qualidade surpreendente e que já mereceriam um tour próprio. Ou um tour como os já feitos no Chile, Argentina e Califórnia, que combinam observação de aves com visitas e degustações nas vinícolas.
Festivais como esse também são momentos para encontrar velhos amigos e fazer novos, trocar experiências, contar e ouvir “causos”, pegar dicas de viagem e equipamento, e fazer planos para novas aventuras. E em uma cidade pequena e fora da temporada turística, o evento ajuda a economia local.
Reservas privadas
Aproveitei a oportunidade para conhecer a nova reserva particular do patrimônio natural, a RPPN Papagaios de Altitude, adquirida pelo Projeto Charão através da Associação Amigos do Meio Ambiente com fundos da IUCN Netherlands, Rainforest Trust e apoio da Fundação Grupo Boticário.
Essa pequena propriedade de 46,8 hectares é o núcleo do que esperamos se tornar uma área manejada para a natureza que inclua não só RPPNs – do Projeto e seus vizinhos - mas também terras onde as araucárias, os papagaios e seus acompanhantes sejam conservados porque seu verdadeiro valor foi descoberto.
E aí vale lembrar que enquanto um quilo de maças produzidas na região é vendido a R$ 2,50, o quilo do pinhão já passou de R$ 8, o que deveria fazer algumas fichas caírem. Nessa linha, iniciativas muito interessantes foram lançadas pelo programa Araucária+, parceria da Fundação CERTI e da Fundação Grupo Boticário.
Visitando a RPPN Papagaios de Altitude também descobri que há outras iniciativas privadas para conservar o que sobrou da Floresta com Araucária, como as RPPNs Grande Floresta das Araucárias, Serra da Farofa e Emilio Einsfeld Filho, todas com mais de 4 mil hectares.
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Mas nem tudo são flores na região de Urupema.
O Morro do Combate, onde há campos, banhados e florestas, é um dos locais mais fabulosos para avistamento de aves. Ali era um ponto clássico para observar os Vestes-amarelas, espécie endêmica do Pampa e dos Campos Sulinos. Ela depende dos prados para sua alimentação e, como outras aves do bioma, depende como área de reprodução dos banhados nos fundos dos vales e das depressões.
Infelizmente o banhado usado pelos Vestes no Morro do Combate foi drenado para se transformar em uma plantação de batatas. Encontramos alguns Vestes ainda por lá, depois de muitos os terem procurado sem sucesso. Por quanto tempo resistirão?
Risco politicamente correto
Pior ainda. Há o projeto, já em licenciamento, para instalar um parque eólico com mais de uma centena de aerogeradores. Embora a energia eólica seja considerada limpa em termos de emissões de CO2, isso está longe de significar que seja sempre “verde”.
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Na realidade, em algumas regiões, parques eólicos instalados em áreas utilizadas por aves e morcegos têm causado níveis de mortalidade inaceitáveis, que em alguns casos levou ao declínio de espécies ameaçadas. Um parque já implantado na região desrespeitou as recomendações dos biólogos e suas estradas de acesso destruíram banhados preciosos. Coisa de engenheiro.
E eis que algum gênio agora deseja colocar estes moedores de carne em uma região sujeita a neblina onde circulam bandos com centenas de papagaios, além de aves de rapina. Não requer brilhantismo para ver que isso é pedir para uma desgraça acontecer.
E vale lembrar que isso destruiria um dos maiores atrativos de Urupema - seu cenário – em troca de um mínimo de empregos locais. Como Belo Monte e Tapajós, essa é uma daquelas ideias tão infelizes que nem deveria ter sido cogitada.
Veremos o que o futuro reserva para os Papagaios de Altitude e o que os licenciadores da FATMA resolverão. A vida não tem sido fácil para os highlanders, papagaios e outros, que estão longe de serem imortais.
Fonte: http://www.oeco.org.br/blogs/olhar-naturalista/as-araucarias-e-o-grande-festival-dos-papagaios-de-urupema/
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