A foto acima é de um macho jovem de Muriqui-do-sul (Brachyteles arachnoides), um dos maiores primatas das Américas, endêmico da Mata Atlântica entre o Paraná e o Rio de Janeiro e considerado em perigo de extinção. Quando ainda vivo é um bicho simpático como os gorilas que atraem milhares de turistas a partes da África aonde ninguém iria por outra razão.
A população planetária dessa espécie ameaçada é estimada em menos de 2 mil indivíduos, ou menos do que o número de pessoas no quarteirão onde vivo. Esta é mais uma daquelas espécies com maturidade sexual tardia, intervalo entre partos de vários anos e demografia sensível que é facilmente extinta pela caça.
Muriquis são muito raros na Serra do Mar paulista. Quem tentou achá-los sabe. As horas gastas e o custo gasto em munição teriam rendido mais carne se o insigne representante de uma comunidade tradicional tivesse ido catar latas nas praias próximas para vender. Como meu amigo Paulo Auricchio escreveu sobre este caso a motivação para estas caçadas tem mais a ver com o prestígio de matar um animal raro e protegido, e assim dar uma banana à fiscalização ambiental (sempre impopular), associada a uma cultura onde matar animais como primatas é uma atividade aceitável.
Filhote não é presente
"A única forma daquele macaquinho estar na mão de alguém foi matando sua mãe e, muito provavelmente, outros membros do grupo"
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Esse caso me lembra quem “curte” as fotos de sorridentes crianças índias e caboclas segurando um macaquinho, como essa, feita no município de São Paulo ou faz a sua segurando um bichinho em uma dessas excursões “de natureza” por aí. A única forma daquele macaquinho estar na mão de alguém foi matando sua mãe e, muito provavelmente, outros membros do grupo. Em minha modesta opinião isso não é “curtível”´, mas tão odioso quanto o costume de europeus medievais e renascentistas de ter um indiozinho ou negrinho em casa para servir de tópico de conversação.
O abate de Muriquis por populações caiçaras, caboclas e guaranis é coisa do passado? Afinal, estamos no século 21, quem vivia de roça, pesca e caça hoje tem uma pousada ou emprego com carteira assinada e as novas gerações parecem mais interessadas em videogames, Facebook e surf do que em longas horas no mato atrás de animais para matar. Mas é bem mais complicado que isso.
A palmeira juçara, a fonte do palmito, é uma espécie-chave para as comunidades de aves e mamíferosfrugívoros. Sua extração e consequente extinção ecológica reverberam por todo o ecossistema, coisa que os adeptos do “manejo sustentado” (incluindo a coleta de frutos para polpa) não enfatizam muito.
Nem todo mundo deixou a economia extrativista e destruidora. Isso é reflexo do enorme mercado consumidor de palmito que não se importa com a origem do mesmo (isto daria uma campanha de conscientização muito mais útil que distribuir sacolinhas para guardar lixo nas praias), do afrouxamento das penalidades sobre caça e extração ilegal após a infeliz lei ambiental de 1998, e de uma fiscalização e serviço de inteligência inadequados para lidar com os bandidos à solta no mato e seus colegas em escritórios.
A situação em São Paulo deve piorar com a anunciada demissão dos vigias volantes que até a pouco faziam a fiscalização nos parques estaduais, perspectiva que está tirando o sono dos gestores e mostra a involução de São Paulo em comparação a Minas Gerais e Rio de Janeiro (onde a pouco foram contratadas duas centenas de guardas-parque via concurso).
Poucos podem fazer grande estrago
Há muitas atividades e formas de ocupação compatíveis com a conservação da biodiversidade e serviços ambientais em uma Unidade de Conservação, mas caça e extrativismo de espécies ameaçadas não estão entre elas e basta uma dezena de pessoas para causar muito estrago.
Não faltam estudos sobre defaunação e seus impactos, e a Mata Atlântica, em particular, sofreu muito com isso e está longe de seu potencial pleno em parâmetros como biomassa e densidade de vertebrados. Um programa de pesquisa sobre o assunto cujos resultados deveriam nortear políticas públicas é conduzido há anos pelo grupo de Mauro Galetti, da Universidade Estadual Paulista.
A história do Muriqui cuja mãe foi morta pelos índios de Itariri recorda que uma das maiores, mas menos divulgadas, ameaças às Unidades de Conservação (e sua fauna) na Mata Atlântica paulista é a invasão das mesmas por grupos indígenas, alguns imigrantes recentes, que têm o “direito” de caçar e extrair sem que fiscais e policiais ousem tocá-los, causando um enorme estrago, como observei no Parque Estadual Intervales. É um problema complicado, sujeito a forte patrulha ideológica e do qual a maioria dos políticos quer distância. Mas que cresce, como mostra a proposta de privatizar 4.957 hectares do Parque Estadual da Serra do Mar em Ubatuba para criar uma nova terra indígena, publicada pela FUNAI em abril passado.
As histórias destes dois falecidos Muriquis mostra que proteger espécies ameaçadas implica em limitar o que as pessoas podem fazer e retirar a pressão sobre suas populações, o que pode acontecer quando novas atividades econômicas substituem as tradicionais. Há ideias que fazem esta transição necessária, como o projeto Fortaleza do Palmito Juçara dos índios guarani da TI Rio Silveira mostram o caminho e devem ser incentivadas, mas também que mudanças culturais podem só acontecer em situações-limite e que nem todos abraçam a ideia. Enquanto isso, os bichos pagam o pato.
Autor deste blog, Fabio Olmos é biólogo e doutor em zoologia. Tem um pendor pela ornitologia e gosto pela relação entre ecologia, economia e antropologia. Seu último livro, sobre ecossistemas brasileiros e conservação, éEspécies e Ecossistemas. |
Fonte: http://www.oeco.org.br/olhar-naturalista/27262-uma-historia-de-dois-muriquis
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