quarta-feira, 12 de junho de 2013

Uma História de Dois Muriquis


Um muriqui (Brachyteles arachnoides) morto por um caiçara no Sertão do Puruba, em Ubatuba (SP), após devidamente esfolado e esquartejado.
Estava mexendo em fotos antigas, feitas na década de 1990, quando eu trabalhava para o Instituto Florestal de São Paulo, e encontrei essas. Eu as acho especialmente educativas por ilustrarem parte das razões de meu pouco entusiasmo por pessoas vivendo “tradicionalmente” em áreas protegidas.

A foto acima é de um macho jovem de Muriqui-do-sul (Brachyteles arachnoides), um dos maiores primatas das Américas, endêmico da Mata Atlântica entre o Paraná e o Rio de Janeiro e considerado em perigo de extinção. Quando ainda vivo é um bicho simpático como os gorilas que atraem milhares de turistas a partes da África aonde ninguém iria por outra razão.

A população planetária dessa espécie ameaçada é estimada em menos de 2 mil indivíduos, ou menos do que o número de pessoas no quarteirão onde vivo. Esta é mais uma daquelas espécies com maturidade sexual tardia, intervalo entre partos de vários anos e demografia sensível que é facilmente extinta pela caça.

Se você não reconhece o bicho na foto como um Muriqui é porque um caiçara habitante do Sertão do Puruba, em Ubatuba (SP) invadiu o Parque Estadual da Serra do Mar em uma caçada que demandou muitas horas de caminhada morro acima e o matou, juntamente com outro macho e uma fêmea, para comê-los. O que não teve nada a ver com uma necessidade real de proteína, como alguns poderiam argumentar. 

Muriquis são muito raros na Serra do Mar paulista. Quem tentou achá-los sabe. As horas gastas e o custo gasto em munição teriam rendido mais carne se o insigne representante de uma comunidade tradicional tivesse ido catar latas nas praias próximas para vender. Como meu amigo Paulo Auricchio escreveu sobre este caso a motivação para estas caçadas tem mais a ver com o prestígio de matar um animal raro e protegido, e assim dar uma banana à fiscalização ambiental (sempre impopular), associada a uma cultura onde matar animais como primatas é uma atividade aceitável.

Filhote não é presente

"A única forma daquele macaquinho estar na mão de alguém foi matando sua mãe e, muito provavelmente, outros membros do grupo"
O segundo muriqui é um bebê dado como presente a um rapaz que doou roupas e mantimentos aos índios Guarani da Terra Indígena Itariri, vizinha à Estação Ecológica Juréia-Itatins. A mãe acabou na panela, como os muriquis de Ubatuba (fêmeas de primatas são um alvo favorito dos grupos que consomem sua carne; a carne tem gosto melhor e os filhotes servem de brinquedo e mercadoria), O Muriqui da foto, junto com outro filhote de mesma origem, eventualmente acabou no Zoológico de São Paulo, onde chegaram à idade adulta e morreram precocemente sem produzir filhotes.

Esse caso me lembra quem “curte” as fotos de sorridentes crianças índias e caboclas segurando um macaquinho, como essa, feita no município de São Paulo ou faz a sua segurando um bichinho em uma dessas excursões “de natureza” por aí. A única forma daquele macaquinho estar na mão de alguém foi matando sua mãe e, muito provavelmente, outros membros do grupo. Em minha modesta opinião isso não é “curtível”´, mas tão odioso quanto o costume de europeus medievais e renascentistas de ter um indiozinho ou negrinho em casa para servir de tópico de conversação.

O abate de Muriquis por populações caiçaras, caboclas e guaranis é coisa do passado? Afinal, estamos no século 21, quem vivia de roça, pesca e caça hoje tem uma pousada ou emprego com carteira assinada e as novas gerações parecem mais interessadas em videogames, Facebook e surf do que em longas horas no mato atrás de animais para matar. Mas é bem mais complicado que isso.

Filhote de Muriqui dado como presente. Foto: Fabio Olmos
O Plano Nacional de Ação para Conservação dos Muriquis é explícito ao mencionar as recentes extinções e redução drástica de populações de muriquis em unidades de conservação de São Paulo associada à extração de palmito e à caça praticada como atividade acessória. Estes ilícitos são, no mais das vezes, praticados por membros de comunidades que vivem no entorno e no interior de Unidades de Conservação, especialmente nas serras do Mar e de Paranapiacaba

A palmeira juçara, a fonte do palmito, é uma espécie-chave para as comunidades de aves e mamíferosfrugívoros. Sua extração e consequente extinção ecológica reverberam por todo o ecossistema, coisa que os adeptos do “manejo sustentado” (incluindo a coleta de frutos para polpa) não enfatizam muito. 

Nem todo mundo deixou a economia extrativista e destruidora. Isso é reflexo do enorme mercado consumidor de palmito que não se importa com a origem do mesmo (isto daria uma campanha de conscientização muito mais útil que distribuir sacolinhas para guardar lixo nas praias), do afrouxamento das penalidades sobre caça e extração ilegal após a infeliz lei ambiental de 1998, e de uma fiscalização e serviço de inteligência inadequados para lidar com os bandidos à solta no mato e seus colegas em escritórios. 

A situação em São Paulo deve piorar com a anunciada demissão dos vigias volantes que até a pouco faziam a fiscalização nos parques estaduais, perspectiva que está tirando o sono dos gestores e mostra a involução de São Paulo em comparação a Minas Gerais e Rio de Janeiro (onde a pouco foram contratadas duas centenas de guardas-parque via concurso). 

Poucos podem fazer grande estrago

Há muitas atividades e formas de ocupação compatíveis com a conservação da biodiversidade e serviços ambientais em uma Unidade de Conservação, mas caça e extrativismo de espécies ameaçadas não estão entre elas e basta uma dezena de pessoas para causar muito estrago. 

Não faltam estudos sobre defaunação e seus impactos, e a Mata Atlântica, em particular, sofreu muito com isso e está longe de seu potencial pleno em parâmetros como biomassa e densidade de vertebrados. Um programa de pesquisa sobre o assunto cujos resultados deveriam nortear políticas públicas é conduzido há anos pelo grupo de Mauro Galetti, da Universidade Estadual Paulista.

A história do Muriqui cuja mãe foi morta pelos índios de Itariri recorda que uma das maiores, mas menos divulgadas, ameaças às Unidades de Conservação (e sua fauna) na Mata Atlântica paulista é a invasão das mesmas por grupos indígenas, alguns imigrantes recentes, que têm o “direito” de caçar e extrair sem que fiscais e policiais ousem tocá-los, causando um enorme estrago, como observei no Parque Estadual Intervales. É um problema complicado, sujeito a forte patrulha ideológica e do qual a maioria dos políticos quer distância. Mas que cresce, como mostra a proposta de privatizar 4.957 hectares do Parque Estadual da Serra do Mar em Ubatuba para criar uma nova terra indígena, publicada pela FUNAI em abril passado.

As histórias destes dois falecidos Muriquis mostra que proteger espécies ameaçadas implica em limitar o que as pessoas podem fazer e retirar a pressão sobre suas populações, o que pode acontecer quando novas atividades econômicas substituem as tradicionais. Há ideias que fazem esta transição necessária, como o projeto Fortaleza do Palmito Juçara dos índios guarani da TI Rio Silveira mostram o caminho e devem ser incentivadas, mas também que mudanças culturais podem só acontecer em situações-limite e que nem todos abraçam a ideia. Enquanto isso, os bichos pagam o pato.


Autor deste blog, Fabio Olmos é biólogo e doutor em zoologia. Tem um pendor pela ornitologia e gosto pela relação entre ecologia, economia e antropologia. Seu último livro, sobre ecossistemas brasileiros e conservação, éEspécies e Ecossistemas.

Fonte: http://www.oeco.org.br/olhar-naturalista/27262-uma-historia-de-dois-muriquis

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