terça-feira, 23 de outubro de 2012
Almas-de-mestre: hábeis passageiros do vento
Perdão se você achava ser o pináculo da criação, mas as aves são os vertebrados mais evoluídos e mais bem sucedidos, ausentes apenas das profundezas oceânicas, embora alguns pinguins mergulhem regularmente a mais de 100 m. Há aves com estilos de vida que humilham nosso orgulho mamífero e nossa definição comum de comportamento “radical”.
Durante a III Expedicao de Avistagem em Alcatrazes, já na partida em Barra do Una, litoral norte de São Paulo,nossa equipe avistou várias Almas-de-mestre (Oceanites oceanicus) o que elevou a adrenalina dos observadores e fotógrafos de aves a bordo, mas o prato principal estava mais adiante.
Próximo à ilha Montão de Trigo um grupo de 15-20 golfinhos-de-dentes-rugosos (Steno bredanensis) capturava peixes de porte médio e os despedaçava antes de comê-los, resultando em vísceras e pedaços de carne flutuantes que eram entusiasticamente consumidos por um grupo de 120 a150 Almas-de-mestre, as quais também sofriam a competição de Fragatas (Fregata magnificens).
Essa foi uma interação muito interessante e, aparentemente, ainda não relatada na literatura científica. Além de mostrar mais uma vez que cetáceos existem para fornecer alimento às aves marinhas, comprova a abundância sazonal das Almas fora do litoral paulista.
A Oceanites oceanicus é uma ave com um comprimento de 15 a 19 cm que pesa de 28 a 50 g. Ou seja, está longe de ser um gigante. E o menor vertebrado não-peixe da Antártica e pode viver várias décadas, mas não se sabe exatamente quanto. As populações da espécie no Atlântico nidificam no litoral da Antártica e em ilhas subantárticas como Isla de Los Estados, Falklands, South Georgia, South Shetlands, etc. Quem já esteve lá, viu documentários ou leu os livros de Amyr Klink sabe que o mar, nestas latitudes, é o mais furioso do planeta.
E o dia a dia deste passarinho de 50 g (no máximo) é encarar ventos com muitas dezenas de quilômetros por hora e ondas de afundar cargueiro. É assim que obtém seu alimento, formado por zooplâncton e toda a proteína e gordura animal que puder engolir, incluindo pedacinhos de gordura de baleias consumidas por orcas e tubarões. Os ninhos são buracos entre rochas, para onde retornam no lusco-fusco ou escuro com a intenção de evitar as skuas predadoras. No escuro, os ninhos são localizados pelos pais através do olfato.
Mas as radicalidades deste dinossauro - como o são todas as aves - não são só essas. Quando o inverno se aproxima estas feras migram para o norte. Muito para o norte, na realidade. As Almas cruzam o equador e continuam indo, chegando até latitudes equivalentes à Terra Nova e o extremo sul da Groenlândia. E ali continuam levando sua vida de ciscar a superfície do mar, quase como se pulassem amarelinha (imagino que as gerações mais novas não saibam o que é isso. Senão, google it). Até a chegada do outono no hemisfério norte, quando começa a migração de retorno.
As Almas nidificam entre novembro e abril, o que quer dizer que em outubro estão passando pelo litoral brasileiro em grande número, rumo a suas colônias bem mais ao sul. É nessa época que podemos vê-las, especialmente quando os ventos as trazem para junto à costa. Sabendo como vivem, é de pensar como uma ave “delicada” possa ter um estilo de vida tão brutal.
Fonte: http://www.oeco.com.br/olhar-naturalista/26583-almas-de-mestre-habeis-passageiros-do-vento
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