- terça-feira, 01 setembro 2015 17:47
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*Publicado originalmente no blog Vida das Aves.
A saga da jornada amazônica de Wallace é um ponto alto na história da ciência para qualquer pessoa que goste de calamidades, perseverança, aventuras, intrepidez e ironia negra(D. Quammen em ‘O canto do dodô’).
Água, água por todos os lados, nem uma gota para beber [1].
Talvez fosse esse o poema trágico de Samuel Taylor Coleridge, a balada do velho marinheiro, que veio à cabeça de Alfred Russel Wallace enquanto ele estava a bordo de um bote salva-vidas em companhia da tripulação do navio inglês chamado Helen. O bote estava à deriva em pleno triângulo das Bermudas em agosto de 1852. Alfred, na época apenas um anônimo caçador de borboletas e besouros, ficou dez dias neste bote esperando pelo quase impossível: um resgate. O navio mercante Helen havia pegado fogo em alto mar, próximo ao arquipélago das Bermudas e afundado em chamas levando toda a mercadoria para o fundo do mar.
Wallace embarcou no Helen na cidade de Belém do Pará, situada no estuário do rio Amazonas no dia 12 de julho de 1852 rumo à velha Grã-Bretanha, sua terra natal, da qual havia se separado havia quatro anos. Durante todos esses anos vivera na Amazônia, coletando borboletas, besouros e o que mais fosse possível a mando de certo Samuel Stevens, que vendia esse material para colecionadores ingleses. Na Inglaterra vitoriana, colecionar qualquer coisa (de selos a borboletas) era um hábito comum e bem visto.
A bagagem de Wallace no Helen consistia de trinta e quatro animais vivos (macacos, tucanos, papagaios, várias caixas apinhadas de borboletas, besouros e outros insetos devidamente conservados). O naufrágio de Wallace em alto mar talvez seja uma das histórias mais trágicas de toda a história da biologia, pois com ele todo o material inédito e insubstituível coletado por Wallace se perdeu, bem como suas principais anotações, diários e desenhos. O acidente foi descrito pormenorizadamente pelo próprio Wallace no seu livro ‘Viagens pelo rio Amazonas e Negro’ publicado em 1853[2].
Na manhã de segunda-feira, 12 de julho, embarcamo-nos, fazendo assim as nossas despedidas às alvas casas e ondulantes palmeiras de Belém do Pará. A carga do nosso veleiro consistia em cerca de 120 toneladas de borracha, grande quantidade de sementes de cacau, urucu, piaçaba e óleo de copaíba.
A viagem parecia tranquila, com a exceção dos surtos de febre malárica que Wallace contraíra em algum período daqueles quatro anos passados na planície amazônica. Até que na manhã do dia 6 de agosto Wallace é importunado na sua cabine pelo capitão e proprietário do navio, o inglês John Turner.
Naquela manhã, após o almoço, estava eu lendo tranquilamente em meu camarote, quando ali desceu o capitão Turner, dizendo- me então:– Estou receoso de que o meu navio esteja a incendiar-se! Venha ver o que o senhor pensa a respeito disso!
E o drama se instala a bordo do Helen.
Ali, a fumaça era muito mais densa, e, em curtíssimo espaço de tempo, tornou-se tão insuportável e tão sufocante, que os homens não puderam permanecer no porão, para retirar mais carga.No momento, como melhor solução, começaram a atirar água ali, enquanto outros se dirigiam para a cabine, onde já encontraram também muita fumaça, que saía do lazareto, através das juntas do tabique que a separava do porão. Fizeram-se várias tentativas para arrancar o tabique; mas as tábuas eram demasiadamente grossas, e a fumaça se tornara tão insuportável, que foi impossível levar isso a efeito.
A tragédia parecia irreversível.
Vendo, afinal de contas, a pouca possibilidade de extinguir-se o incêndio com os nossos próprios recursos, o capitão julgou mais prudente e mais acertado tratar da nossa própria segurança. Ordenou a toda a equipagem que arriasse imediatamente todos os botes e neles colocasse tantas provisões quantas fossem necessárias, prevendo, assim, o caso de ser preciso passarmos para os botes.
A retirada dos botes salva-vidas se deu sob o caos de uma tripulação desesperada e desorganizada.
Todos a bordo estavam em grande atividade. Poucas provisões puderam ser retiradas das dispensas. Ordenou- se ao cozinheiro para tapar as cavidades e fendas dos botes. Ninguém agora sabia onde se achavam os remos deles. Os toletes de pinho não se achavam no lugar próprio e não se conseguia encontrá- los.Havia que procurar também os remos, bem como os paus, que deveriam servir de mastros e velas adequadas aos mesmos. Panos sobressalentes, fios, cordoalha, sirgas, cabos de reboque, agulhas para velas, pregos, tachas, ferramentas de carpinteiro, etc., foram retirados e levados para os botes.
Wallace ainda teve tempo e coragem para resgatar alguns dos seus inúmeros pertences.
Eu ainda desci à minha cabine, que estava agora sufocantemente quente, tomada pela fumaça, para ver o que valia a pena salvar.Tirei apenas o meu relógio e uma pequena caixa de folha- de-flandres, que continha algumas camisas e uns dois livros de notas, com alguns desenhos de plantas e animais. Com dificuldade, agarrando-me às paredes, consegui subir para a coberta do convés.Na minha cama, ficaram ainda as minhas roupas e um grande álbum de desenhos e esquemas. Não tive coragem de aventurar-me a descer lá pela segunda vez.Na verdade, senti uma espécie de apatia para tratar de salvar o que quer que fosse, mesmo porque, no momento, eu dificilmente podia atinar com o que devia fazer, com o que valesse a pena salvaguardar.
Mas mesmo dentro do bote salva-vidas o drama parecia sem fim.
Tendo ficado os botes longo tempo expostos ao sol tropical, estavam com a madeira bastante ressecada, motivo por que se encheram logo de água, molhando-se os livros, as peças de roupa, cobertores, sapatos, carne de porco, queijos, etc., que haviam sido jogados para dentro deles, confusamente.Foi preciso pôr dois homens em cada um dos botes, a fim de retirar a água que estava penetrando neles.
E finalmente toda a esperança se esvai e Wallace, dentro do bote apenas observa o inevitável.
Permanecemos junto à popa do navio, ao qual estávamos ainda atracados, assistindo de bordo dos botes ao progresso do fogo. As chamas já haviam atingido as enxárcias e as velas.O espetáculo era estupendo.As labaredas iam lambendo os pontos mais altos, onde avultavam armações, que já estavam com o tempo contado.Logo depois, os aparelhos e velas de proa foram também atingidos, e as chamas irromperam das escotilhas, pelo porão de vante, vendo-se assim como rapidamente o fogo se ia alastrando, graças à carga de combustível.Não tendo mais nenhuma vela para equilibrá-lo, o navio principiou a revolver-se, a rodar, a balancear, e os seus mastros, não podendo por mais tempo sustentar-se sem as amarras, começaram a inclinar-se, estalando, ameaçando cair a bordo a todo momento.
Enquanto o milagre de um resgate não acontecia, Alfred delirava e perguntava a si mesmo ‘com a minha besta, eu matei o Albatroz? Era mais uma vez o poema de Coleridge, que tanto fora obrigado a recitar nas aulas de literatura, infernizando sua psique.
Na balada do velho marinheiro de Coleridge, um velho marinheiro conta sua infeliz história em que, quando navegava em alto mar seu navio se perdera na gélidas águas antárticas. Quando toda a tripulação entra em desespero aparece um albatroz que os guia para mares calmos e seguro. Entretanto, o tal velho marinheiro, num gesto insano mata o albatroz, a ave de bom augúrio. A partir daí, a desgraça cai novamente sobre o navio, que permanece à deriva num oceano hostil.
E do sul um bom vento nos soprava alento;
O Albatroz nos seguia,
E à nossa saudação, por fome ou diversão,
Buscava todo dia!Em névoa ou nuvem vem, no mastro ou no ovém,
Por vésperas nove pousar;
Enquanto a noite inteira, em bruma alva e ligeira,
Luzia o alvo luar.”“Velho Marujo! Deus te salve dos demônios
Que de ti vão empós…
Que olhar! Que te molesta?” Com a minha besta
Eu matei o Albatroz.
Depois disso, o navio onde estava o velho marinheiro fora subitamente imobilizado e o albatroz começa a ser vingado.
E num ardente céu de cobre, ao meio dia,
Em sangue o sol flutua,
Pairando bem em cima do alto mastro,
Não maior do que a Lua.Dia após dia, o barco ali, dia após dia,
Sem sopro, ali, cravado;
Ocioso qual uma pintada embarcação
Num oceano pintado.Água, água, quanta água em toda a parte,
E a madeira a encolher;
Água, água, quanta água em toda a parte,
Sem gota que beber.
Em pleno desespero o navio do velho marinheiro é abordado pelo fantasma da morte e pela figura da vida-em-morte, que disputam as almas dos marinheiros. O fantasma ganha toda a tripulação e a figura da vida-em-morte ganha a alma do marinheiro, que daí em diante terá uma vida pior que qualquer morte. Qual seria o destino de Alfred Russel Wallace?
Wallace e a tripulação já estavam há nove dias em oceano aberto, às vezes sob sol escaldante, intensa sede, outras vezes sob chuva e ventos frios que faziam seu bote balançar perigosamente frente as ondas que os molhavam de mais água salgada. Certamente, ao longo desses nove intermináveis dias, Alfred encontrou-se frente a frente com a morte. Mas, diferente da sina do velho marinheiro de Coleridge, o milagre aconteceu.
Já estávamos quase desesperançados de ver algum navio, ou, então, de alcançar as Bermudas.Cerca das 5 horas da manhã, justamente quando tomávamos a nossa matinal refeição, notamos que o bote grande, que ia a alguma distância à nossa frente, repentinamente virou de bordo.– Eles devem ter visto uma vela ou algum navio! – exclamou o capitão.Correndo o olhar em roda, distinguimos, então, um navio, que vinha aproximadamente em nossa direção, e que deveria estar a umas cinco milhas de distância.Estávamos salvos!
Alfred Russel Wallace e toda a tripulação do Helen foram resgatados por outro navio mercante inglês de nome Jordeson que fazia a mesma rota. Apesar da tragédia pessoal e do enorme patrimônio científico perdido na viagem, Wallace conseguiu dar a volta por cima, e no aconchego do lar ainda conseguiu reunir cartas enviadas, pequenas anotações e dados guardados na memória para escrever sua narrativa amazônica publicada em 1853. Além disso, Wallace reuniu dados para escrever o mais importante artigo de biogeografia de todos os tempos, publicado nos anais da Sociedade Zoológica de Londres em 1852, intitulado “On the monkeys of Amazon” [Sobre os macacos da Amazônia][3]. É o artigo mais admirável da biogeografia porque Wallace fora o primeiro naturalista a enfatizar a importância de se acumular dados sobre a distribuição geográfica das espécies da fauna e flora, pois só assim ele achava (o que se tornaria uma verdade) que poderia responder ao “mistério do mistério” (termo cunhado por Charles Darwin no seu diário do Beagle para se referir à substituição das espécies extintas por outras – uma clara referência ao filósofo da ciência John Hershel[4]). Neste artigo Wallace mostra que estava à frente do seu tempo, e assim escreveu:
O grande vale do Amazonas é rico em espécies de macacos, e durante a minha residência lá eu tive muitas oportunidades de me familiarizar com os seus hábitos e distribuição. As poucas observações que eu tenho a fazer se aplicam principalmente a este último particular. Eu mesmo vi vinte e uma espécies; sete com cauda preênsil e quatorze com caudas não preênsil, como mostra a lista a seguir.
A partir daí Wallace descreve a distribuição de cada uma dessas espécies.
Nas várias obras sobre história natural e em nossos museus, temos as declarações mais vagas de localidades das espécies. América do Sul, Brasil, Guiana, Peru, estão entre as mais comuns; e se temos “Rio Amazonas” ou “Quito” anexado a um espécime, podemos contar com a sorte para obter qualquer coisa que defina melhor a localidade: embora ambos estejam na fronteira de dois distritos zoológicos distintos, não temos mais nada a nos dizer, ou seja, se uma veio do norte ou do sul da Amazônia, ou o outro do leste ou a oeste dos Andes. Devido a esta incerteza da localidade, e a confusão adicional criada por espécies confundidas com outras de países distantes, não há praticamente um animal cujos limites geográficos exato possamos marcar no mapa.
E então Wallace coloca as perguntas fundamentais da biogeografia:
Nesta determinação exata da distribuição geográfica de um animal dependem muitas perguntas interessantes. São espécies estreitamente aliadas sempre separadas por um amplo intervalo de terras? Quais são as características físicas que determinam os limites das espécies e dos gêneros? Será que as linhas isotérmicas estão sempre com precisão ligadas a gama de espécies, ou são completamente independentes destas? Quais são as circunstâncias que tornam certos rios e serras os limites de numerosas espécies, enquanto outros não são? Nenhuma dessas perguntas pode ser respondida de forma satisfatória até termos a gama de numerosas espécies determinada com precisão.
Wallace apresenta os seus dados:
Durante a minha residência na Amazônia aproveitei cada oportunidade de determinar os limites das espécies, e logo descobri que a Amazônia, o Rio Negro e o Madeira formam os limites além dos quais certas espécies nunca passam. Os caçadores nativos estão perfeitamente familiarizados com este fato, e sempre atravessam o rio quando eles querem adquirir determinados animais, que são encontrados até mesmo na margem do rio de um lado, mas nunca por acaso, no outro lado. Ao se aproximar as nascentes dos rios que deixam de ser uma fronteira, a maioria das espécies são encontradas em ambos os lados deles. Assim, várias espécies da Guiana chegam ao Rio Negro e Amazonas, mas não os passam; Espécies brasileiras, pelo contrário alcançam, mas não passam a Amazônia para o norte. Várias espécies do Equador do leste dos Andes descem para a língua de terra entre o Rio Negro e o Alto Amazonas, mas não passam nenhum desses rios, e outros do Peru são delimitados a norte pelo alto Amazonas, e no leste pelo rio Madeira. Assim, há quatro distritos, a Guiana, o Equador, o Peru e o distrito do Brasil, cujos limites de um lado são determinados pelos rios que mencionei.
E Wallace finalmente conclui:
A distribuição dos macacos está limitada pelos rios. Espécies aparentadas são vizinhas de margens. Como isso ocorre? Por que? Isso é um padrão geral para outros elementos da flora e fauna?
Alfred Russel Wallace havia lançado as sementes da biogeografia, disciplina que se tornaria essencial para que se conhecesse o processo de extinção de espécies, hoje um dos temas mais importantes do nosso tempo. Agora imagine e pense: o que teria sido se o desconhecido caçador de borboletas Alfred tivesse morrido de fome e sede em alto mar? Estaria sua alma penando como a do velho marinheiro que matara o albatroz e cujo destino então seria apenas contar sua história?
Tenho um estranho dom do verbo; e, como a noite,
Errar de terra em terra é meu destino;
No momento em que vejo um rosto num lugar,
Eu sei que é o homem que precisa me escutar,
E meu caso lhe ensino.
PS. Este texto é dedicado à amiga bióloga e escritora Ana Carolina Neves, que me apresentou a Samuel Taylor Coleridge.
[1] A balada do velho marinheiro, Samuel Taylor Coleridge, tradução de Alípio Correia de Franca Neto, ilustrações de Gustave Doré, Cotia – SP. Ateliê Editorial (2005).
[2] Wallace, A.R. 1853. Viagens ao rio Negro e Amazonas. Editora do Senado Federal (2004). [Disponível em http://www2.senado.leg.br/bdsf/item/id/1092 ]
[3] Wallace, A.R. 1853. On the monkeys of amazon. Journal of Natural History Series 2 (Annals and Magazine of Natural History), 14:84, 451-454.
[4] Quammen, D. 2006. As dúvidas do sr. Darwin. Companhia das Letras.
Fonte: http://www.oeco.org.br/colunas/colunistas-convidados/vida-das-aves-alfred-russel-wallace-o-velho-marinheiro-e-a-extincao-de-especies/
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