Uma das pesquisas antropológicas mais intrigantes dos últimos tempos saiu na revista “Nature” e foi coberta por este escriba que vos fala em reportagem desta semana na Folha. Em resumo (dá pra ter uma ideia do teor da pesquisa vendo também o infográfico abaixo), o estudo dinamarquês, coordenado por Eske Willerslev, sugere a contribuição de dois grupos populacionais humanos bem distintos para a formação dos atuais grupos indígenas americanos, ou ameríndios, tudo isso a partir do genoma de siberianos da Era do Gelo. É algo que lembra bastante a tese defendida há décadas por Walter Neves, bioantropólogo da USP que foi responsável por levar ao estrelato a hoje célebre “Luzia”, esqueleto de 11 mil anos achado em Lagoa Santa (MG) com traços “negros”, assim como toda a população que vivia na Lagoa Santa pré-histórica. A diferença é que o novo estudo aponta semelhanças entre ameríndios e europeus pré-históricos.
Falei com alguns dos principais estudiosos do tema no Brasil para tentar entender o que os achados significam. Como nunca é possível colocar toda a riqueza de informações dessas entrevistas na edição impressa do jornal, trago pra vocês abaixo o que cada um deles me disse, na íntegra, por e-mail. São cientistas que colaboram justamente nessa área de povoamento da América, daí as referência a “nosso grupo” nas respostas.
Fabrício Rodrigues dos Santos, geneticista e professor da UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais)
“Oi Reinaldo,
Estou em trabalho de campo, saindo agora mesmo… mas há duas semanas eu estava lá no laboratório do Eske Willerslev na Dinamarca e tinha recebido o PDF do artigo para um comentário no ‘NY Times’ junto com um colega que está aqui conosco, o Theodore Schurr.
Ele retorna muito ao ponto que levantamos em nosso artigo de 1999 desta conexão da área do lago Baikal e montes Altai com o povoamento da América.
Fluxo gênico/admixture [ou seja, mestiçagem entre populações] tem sido levantado como um fator importante na formação desta população eurasiana e no povoamento da América, mas acho que é melhor contextualizar que este é um evento demográfico de 25 mil anos atrás… por exemplo, eles ressaltam muito o fato de Mal’ta [o menino estudado na pesquisa] ter cromossomo Y (R1) e mtDNA (U5) que ocorrem na Europa, mas essas linhagens ainda ocorrem na mesma localidade, junto com outras que são as comuns entre nativos americanos.
A importância deste artigo é comprovar com dados genômicos de DNA antigo que a rota de colonização pela Eurásia Central, como já havia sido indicado por Marta Lahr e outros, também tem evidência genética, não só morfológica. E que esta deve estar ligada com o primeiro povoamento da América, com indivíduos não diferenciados (não mongólicos) e que subsequentes características mongólicas foram adquiridas via fluxo gênico, principalmente de populações do leste asiático…
Infelizmente, eles são da área de genômica e não têm o histórico de trabalhar com o povoamento da América, portanto ignoram muito da literatura que já mencionava estes eventos… mas é uma demonstração do que está por vir, já que o sequenciamento dessas amostras antigas está se tornando realidade, quem sabe conseguem o genoma de indígenas pré-colombianos…”
Rolando González-José, biólogo do Centro Nacional Patagônico, na Argentina.
“Oi Reinaldo!
Como vai? Muito obrigado por me consultar sobre isso. Minhas opinião sobre esses resultados é que, de algum modo, eles confirmam que os primeiros nativos americanos provêm de um estoque populacional euroasiático com características biológicas (genéticas e morfológicas) basais para nossa espécie. Quer dizer, o menino de Mal’ta tem marcas genéticas basais, que acabariam dando origem tanto aos europeus quanto aos ameríndios.
Isso não implica que tenha havido duas “ondas” migratórias para a América, mas sim que a maneira mais parcimoniosa de interpretar esses resultados é que existiu um estoque ancestral com alto grau de diversificação genética e morfológica, que depois se especializou (ou derivou) rumo a características genéticas e morfológicas mais particulares em distintas regiões do globo, inclusive na América. Um cenário de alta diversidade ancestral, expandindo-se sem competidores, e depois ficando mais derivada nos extremos da distribuição geográfica, é algo esperável no marco da teoria da genética populacional. Além disso, está em acordo com nosso cenário do povoamento americano que publicamos em 2008 e que vamos republicar na revista ‘PNAS’ em breve.”
Maria Cátira Bortolini, geneticista e professora da UFRGS (Universidade Federal do Rio Grande do Sul)
Oi Reinaldo, sigo na mesma linha de observações dos colegas. As conexões entre nativos americanos e a Eurásia já tinham sido detectadas com estudos do cromossomo Y e agora ganham reforço com esse belo trabalho com um genoma completo de uma amostra arqueológica/paleontológica. Na época em que viveu o menino de Mal’ta, padrões morfológicos heterogêneos e não diferenciados (não havia ainda o tipo “mongoloide”) e linhagens de mtDNA e Y basais são esperados na Eurásia.
A parada na Beríngia [ponte de terra entre a Sibéria e a América, hoje submersa] e a evolução autóctone dentro da América traz novos padrões. Além disso, migrações e fluxo gênico subsequentes ao fim da Beríngia também explicam a chegada de morfologias derivadas, como é o caso do tipo “mongoloide” entre os esquimós na América do Norte.
O que os dados recentes vêm fornecendo sobre esse fantástico evento migratório (colonização da América) é que foi algo complexo e que não se pode pretender entendê-lo sem uma abordagem interdisciplinar. Tendo isso em mente o panorama torna-se mais fácil de ser entendido.”
Sandro Luis Bonatto, professor do Centro de Biologia Genômica e Molecular da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul.
“Grande Reinaldo,
Obrigado pela oportunidade de comentar este artigo.
Vou tentar acrescentar alguma coisa em relação ao que meus colegas já disseram.
Primeiro, eu acho que o artigo é forçado em relação a algumas conclusões mais específicas (os resultados não são tão claros quanto eles dizem). O objetivo foi focar o artigo em uma área ‘hot’, povoamento da América, e para ter mais publicidade eles tinham de ter alguma conclusão ‘diferente’, e para isso eles forçaram a mão em várias conclusões.
Concordo com os colegas que de modo geral os resultados e conclusões do artigo são bastante compatíveis com nosso modelo, mais do que com qualquer outro modelo (dois componentes do grupo do Walter, três migrações independentes etc.), e eu diria, inclusive, mais do que com o modelo dos próprios autores.
Por exemplo, na afirmação que você comentou, que está no resumo do artigo: ‘O fluxo gênico da linhagem MA-1 [a do menino de Mal'ta] poderia explicar porque vários crânios dos primeiros americanos parecem ter características morfológicas que não lembram as dos habitantes do leste da Ásia’. Primeiro, como o Rolando comentou, esta não é a melhor explicação. Como os trabalhos do Rolando e os nossos já mostram, a simples evidência de que o povoamento da Beríngia se deu antes de 18 mil anos atrás (basta ser antes de 15 mil) já explica isso. Simplesmente a morfologia dos atuais habiantes do leste da Ásia não existia nesta época, nem mesmo na população do leste da Ásia. Ela só surgiu depois.
Portanto, independente da origem última da população que tenha colonizado a América nesta época (com ou sem fluxo gênico), não poderia ter trazido uma morfologia que ainda não tinha surgido. Portanto, não é necessário de modo nenhum acrescentar um fluxo gênico ancestral para explicar isso. Então, o cenário deles implicado por essa afirmação (que a pop. nativa americana ancestral era majoritariamente de morfologia mongoloide e que a morfologia não mongoloide se explicaria pelo fluxo gênico da pop. de Mal’ta) é portanto completamente errado. Isso revela total desconhecimento deles sobre o assunto (ver abaixo).
O difícil, na verdade, é explicar como a morfologia mais mongoloide se infiltra na América bem posteriormente, uma hipótese sendo justamente o modelo de substituição, o segundo componente do Walter. Neste sentido, aliás, os resultados deles refutam mais uma vez esse modelo de dois componentes (mais especificamente, de uma segunda onda migratória recente do leste da Ásia que teria trazido a morfologia mongoloide e substituído as populações derivadas da primeira migração), pois em nenhum momento as populações ameríndias atuais se aproximam das atuais do lesta da Ásia, o que deveria ser o caso.
De novo, como o Rolando falou, a explicação óbvia e mais parcimoniosa é o inverso (o nosso modelo). A população que colonizou a Beríngia e a Europa pode ter sido derivada da pop. de Mal’ta, explicando a posição intermediária desta última. A similaridade ente Mal’ta e os nativos americanos é o que se espera entre ancestral-descendente, mas muito modificada por mais de 25 mil anos de deriva genética e algum fluxo gênico mais recente.
Nenhum dos autores é especialista no assunto, o que dá pra ver nas referências, pois sobre esse assunto uma grande parte é desatualizada ou fora de contexto ou já irrelevante. Se você olhar com atenção, algumas são nitidamente ridículas. Eles citam revisões de 10, 15 anos atrás para demonstrar a falta de consenso atual! Eles citam um artigo de 1999 do Goebel como referência para o que se sabe hoje sobre o povoamento!
Finalmente, tenho vários questionamentos sobre algumas decisões metodológicas que eles usaram.”
É isso, ciência é complicada, dá trabalho e envolve incerteza, gente. Mas é um bocado divertido
* Reinaldo José Lopes é jornalista de ciência e autor do livro Além de Darwin
Nenhum comentário:
Postar um comentário