Vinte
anos após a aprovação do primeiro alimento geneticamente modificado do mundo –
um tomate com maior durabilidade criado na Califórnia -,
o mercado de transgênicos atinge a maturidade com números expressivos, ainda que
cercado de polêmicas. A cada 100 hectares plantados com soja hoje no planeta, 80
já são de sementes com os genes alterados. No caso do milho, são 30 para cada
100, o que significa que a chance de encontrar essas matérias-primas na dieta
alimentar humana e animal cresceu substancialmente.
A
análise é de Flávia
Londres, engenheira agronôma e assessora
da Articulação
Nacional de Agroecologia, publicada pela Escola
Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio, 07-07-2014.
Eis
o texto.
O
jornal Valor
Econômico publicou em 16 de junho duas matérias que,
em síntese, comemoram os 20 anos da aprovação do primeiro alimento transgênico
no mundo. Muitos dados são apresentados sem a citação de fontes de informação,
assim como afirmações a respeito de supostos benefícios dos sistemas de produção
baseados no uso de sementes transgênicas e até mesmo de vantagens para os
consumidores são apresentadas de forma igualmente carente de embasamento. Alguns
especialistas no assunto são citados – curiosamente, somente foram ouvidos
representantes de empresas de biotecnologia e pesquisadores conhecidos pela
defesa incondicional dos produtos geneticamente modificados.
Diante
de tamanha parcialidade no tratamento do tema, consideramos relevante apresentar
aqui algumas informações no sentido de fomentar a discussão e possibilitar uma
análise mais equilibrada sobre a questão.
Para
começar, faz-se importante relativizar a ideia de que as lavouras transgênicas
estão absolutamente generalizadas na agricultura mundial. Se por um lado é fato
que o crescimento da utilização de sementes modificadas nos últimos anos foi
vertiginoso, por outro é importante deixar claro que esses cultivos estão
fortemente concentrados em apenas 3 países (EUA, Brasil e Argentina), que
dominam 76% da produção mundial . Em toda a Europa, por exemplo, a área plantada
com transgênicos é irrisória, sendo que vários países proíbem esses cultivos .
Vale também observar que os números divulgados a respeito da adoção dessa
tecnologia são sistematizados por organizações patrocinadas pelas indústrias,
havendo fortes evidências de que, em muitos casos, são inflados. Os dados do
Brasil divulgados pelo Ministério
da Agricultura, por exemplo, são em geral oriundos de consultorias do
agronegócio contratadas pelas grandes empresas.
Ainda
a esse respeito, destaca-se também que o cultivo comercial de transgênicos em
larga escala está restrito a quatro espécies, que configuram grandes commodities
de exportação (soja, milho, algodão e canola). E essas plantas foram modificadas
para a incorporação de duas características apenas: a tolerância à aplicação de
herbicidas (aplica-se o veneno sobre a lavoura, eliminando-se o mato sem afetar
a plantação) e a toxicidade a insetos (as plantas produzem seu próprio
agrotóxico, matando as lagartas que delas se alimentam). Há também as plantas
que acumulam essas duas características. Nas chamadas plantas “piramidadas”,
referidas como “o futuro da biotecnologia”, são sobrepostas modificações
genéticas que conferem mecanismos diferentes (porém parecidos) para introduzir
nas plantas aquelas mesmas duas características.
Uma das matérias do Valor afirma que os produtores rurais atribuem a massiva adoção das novas sementes aos benefícios da tecnologia, citando especificamente que “a redução das aplicações de inseticidas recuaram 90% até 2010”, bem como uma suposta queda no uso de herbicidas. Nenhuma fonte é apresentada para embasar esses dados.
Uma das matérias do Valor afirma que os produtores rurais atribuem a massiva adoção das novas sementes aos benefícios da tecnologia, citando especificamente que “a redução das aplicações de inseticidas recuaram 90% até 2010”, bem como uma suposta queda no uso de herbicidas. Nenhuma fonte é apresentada para embasar esses dados.
No
caso brasileiro, segundo levantamento realizado pela Anvisa (Agência
Nacional de Vigilância Sanitária), o uso do herbicida glifosato (utilizado em
associação com as lavouras de soja e milho transgênicas desenvolvidas para
tolerar aplicações do produto) saltou de 57,6 mil para 300 mil toneladas entre
2003 e 2009 , período em essas lavouras se expandiram pelo país. Segundo
levantamento da Conab (Companhia
Nacional de Abastecimento / Ministério da Agricultura, Pecuária e
Abastecimento), em Primavera
do Leste (MT), por exemplo, o número de aplicações de
herbicidas na soja transgênica dobrou em seis anos devido ao desenvolvimento de
resistência do mato aos herbicidas . Nos EUA, sistematização realizada partir de
dados do Departamento
de Agricultura do governo (USDA, na sigla em inglês)
mostra que a tecnologia de resistência a herbicidas levou a um aumento de 239
milhões de kg no uso de herbicidas no país entre 1996 e 2011 .
No
caso das plantas transgênicas tóxicas a insetos, os números mostram uma redução
inicial nas aplicações de inseticidas, mas que tende a se reduzir
significativamente ao longo de alguns anos – pois assim como o mato desenvolve
resistência aos herbicidas, as lagartas também desenvolvem resistência às
plantas inseticidas. Mais que isso, essas plantas têm sido associadas ao
surgimento de novas pragas (insetos que antes não representavam ameaça às
lavouras). Recentemente, o Congresso
Nacional aprovou umalei flexibilizando a legislação
de agrotóxicos para autorizar a utilização de produtos não registrados no país.
A mudança foi instalada de modo a permitir a importação e a utilização do
benzoato de emamectina para o combate à lagarta Helicoverpa
armigera, cujo aumento populacional tem sido relacionado (até mesmo
pelo Ministério
da Agricultura) à expansão das lavouras transgênicas inseticidas.
Associado
ao alto preço das sementes transgênicas (que envolvem inclusive o pagamento de
royalties às empresas sementeiras), o aumento no uso de agrotóxicos tem levado
ao aumento dos custos de produção. Dados da Conabmostram
por exemplo que, em três polos de produção no estado do Mato Grosso, a receita
obtida em R$/saca foi maior para os sistemas convencionais do que para os
sistemas transgênicos. Em Primavera
do Leste, a diferença foi de 53 para 48 R$/saca, em Sorriso,
de 48 para 44 R$/saca e de 48 para 43 R$/saca em Campo
Novo dos Parecis.
Esses
números colocam em xeque a afirmação de que a massiva expansão dessas lavouras
no país decorre da percepção das vantagens da tecnologia pelos produtores.
É
preciso lembrar que existe atualmente um forte oligopólio que domina o mercado
de sementes no país (e no mundo), e que a oferta de variedades convencionais é
cada vez menor. São recorrentes os relatos de agricultores que gostariam de
voltar a utilizar sementes convencionais de soja e/ou milho, mas não as
encontram para comprar. Tudo indica, assim, que o plantio de sementes
transgênicas está em grande parte associado à falta de opção por parte dos
agricultores.
Gerente
de comunicação da DuPont citado
pelo Valor associa
em sua declaração os alimentos transgênicos a características como maior
produtividade e maior valor nutricional. Como já exposto anteriormente, os
transgênicos presentes no mercado não apresentam essas qualidades. Afirmações
desse tipo buscam, entre outros objetivos, conquistar a simpatia de consumidores
– consumidores esses que, em todo o mundo, reivindicam o direito à informação
sobre a origem transgênica nos rótulos dos alimentos.
O
lobby contra a rotulagem articulado pela indústria é fortíssimo. Nos EUA até
hoje não se conseguiu aprovar a rotulagem obrigatória de alimentos transgênicos
. No Brasil a rotulagem é exigida desde 2003 pelo Decreto 4.680 , mas são
recorrentes as tentativas da bancada ruralista no Congresso
Nacional de derrubar a normativa .
Fonte
citada pelo valor alega a existência de uma “contaminação do debate político”,
sugerindo que a crítica à tecnologia seria motivada por razões ideológicas, e
reclama de “atrasos nas aprovações de tecnologias” em função da demanda por
testes de segurança. Trata-se da insistente e cruel tentativa de inversão de
papéis: especialistas em biotecnologia valem-se de sua autoridade científica
para fazer afirmações (não embasadas em dados científicos) acerca da segurança
desses produtos e sustentar a rejeição à realização de pesquisas independentes e
aprofundadas de análise de riscos, enquanto aqueles que denunciam a falta de
rigor nos processos de liberação de transgênicos são acusados de
ideológicos.
Nenhum comentário:
Postar um comentário